Plantio de soja, criação de gado, geração de energia elétrica e exploração de minério em Terras Indígenas (TIs) têm sido assunto para acaloradas discussões a respeito do papel dessas áreas na preservação da Amazônia. A não exploração econômica dessas áreas, em grande escala, tem servido de argumento para o impedimento ao crescimento econômico das populações amazônicas. Na contramão dessa discussão um projeto de transferência de tecnologia da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) fez com que, em menos de dois anos, cafeicultores indígenas fossem alçados ao patamar de produtores de cafés especiais, garantindo a essas famílias aumento de renda e melhoria da qualidade de vida, com a floresta em pé.
Em 2018 e 2019 cafés orgânicos produzidos por indígenas das TIs Sete de Setembro e Rio Branco foram premiados em concursos nacionais, ficando entre os 30 melhores do país. Isso ocorreu menos de um ano após o início de um projeto de transferência de tecnologia nos processos de colheita e de pós-colheita iniciado pela Embrapa em 2018. A migração da produção de café tradicional para o patamar de café especial tem trazido muita alegria a famílias indígenas de etnias que, há menos de 100 anos, foram expulsas de seus territórios tradicionais, oprimidas pelo trabalho escravo nos seringais e quase extintas por epidemias de gripe e de sarampo.
Cafés Especiais
Segundo informações da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, sigla em inglês), os cafés especiais são grãos isentos de impurezas e de defeitos, e possuem atributos sensoriais diferenciados. Esses atributos produzem uma bebida limpa e doce, corpo e acidez equilibrados e qualificam a bebida acima dos 80 pontos na análise sensorial. A pontuação é uma metodologia de avaliação internacional da Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA) em uma escala que chega a 100 pontos. Além da qualidade intrínseca, os cafés especiais devem ter rastreabilidade certificada e respeitar critérios de sustentabilidade ambiental, econômica e social em todas as etapas de produção.
Os indígenas de Rondônia têm exatamente o perfil desse mercado seleto que, de acordo com estimativas da BSCA, é um segmento que representa cerca de 12% do mercado internacional de café. Os consumidores têm paladar exigente, mas estão dispostos a pagar pela qualidade e pela sustentabilidade dos produtores.
Como os indígenas passaram a ser cafeicultores
Os Suruí se autodenominam Paiter, que significa “gente de verdade, nós mesmos.” Em 1969 foram oficialmente contatados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e tiveram seu território tradicional homologado em 1983. Até a demarcação de suas terras houve a ocupação por agricultores que plantaram café. Com a desocupação dos não índios os indígenas passaram a cuidar dos cafezais, entretanto, somente por meio dos treinamentos de colheita e de pós-colheita oferecidos pela Embrapa em 2018 é que, em poucos meses, foi possível modificar o perfil sensorial dos cafés produzidos. De maneira que sua produção passou a ser classificada como café especial.
Os Aruá e Tupari tiveram sua terra homologada em 1986. Estima-se que o seu contato com os não índios ocorreu por volta dos anos 1920. Ambas as etnias quase foram dizimadas. De acordo com dados da Funai em 1991 havia aproximadamente 320 indígenas distribuídos em 12 aldeias. Os Aruá tiveram uma depopulação mais drástica e quase foram extintos. Nos anos 1990 a Funai introduziu o estímulo a atividade produtivas para a geração de renda. Há cerca de 35 anos esses povos passaram a produzir arroz, feijão, milho, laranja, café e retornaram à coleta da castanha-do-pará para a própria subsistência e com a venda do excedente. Entretanto, as atividades que permaneceram foram a coleta da castanha e o cultivo do café.
O projeto de transferência de tecnologia, a floresta e a mitigação das mudanças climáticas
O projeto de transferência de tecnologia veio para aumentar o valor agregado do café e transformar produtores indígenas em produtores de cafés especiais. O pesquisador da Embrapa Rondônia, Enrique Alves, explica que o preço do café tem valor agregado à medida que se melhora sua qualidade. Por consequência, é possível melhorar, economicamente, a qualidade de vida das famílias produtoras que vivem na floresta.
Inicialmente a Embrapa avaliou que essa transformação seria complexa. Para sua surpresa os produtores indígenas se mostraram extremamente atentos e disciplinados à transferência de tecnologia, com a vantagem de que não possuíam uma cultura produtora ancestral que implicaria na mudança de hábitos. Já no primeiro ano do projeto conseguiram ser o segundo melhor café do estado de Rondônia e ficaram entre os 20 melhores do país. Deixaram de ser produtores de café tradicionais para serem produtores de café especial.
O cultivo pode ser intercalado em consórcio com outras culturas ou mesmo com espécies arbóreas. Além disso, estudos comprovaram que o café sequestra carbono e pode servir como mais uma estratégia para a mitigação das mudanças climáticas. Para a expansão da produção nas respectivas TIs não é necessário desmatar nenhum hectare de floresta.
O rendimento do café é mais alto quando comparado com outras culturas como a produção de soja e a criação de gado. Em pequenas áreas é possível se ter um rendimento satisfatório, qualidade de vida para a família, o que representa menor pressão sobre a floresta. Além disso, o café é uma cultura amiga da floresta e se ajusta à realidade indígena e de produção no clima amazônico.
Família atendidas, cooperação institucional e parceria público-privada
Há alguns anos as atividades produtivas indígenas tinham acompanhamento apenas da Funai, que auxiliou as populações indígenas a encontrarem atividades produtivas que correspondessem ao seu perfil cultural. Entre as características levou-se em conta que os indígenas são ótimos coletores. Nos últimos anos a Secretaria Municipal de Agricultura de Alta Floresta d’Oeste, o governo de Rondônia, por meio da Secretaria Estadual de Agricultura – Seagri/Emater, e agora uma parceria público-privada com o Grupo 3Corações tem auxiliado os indígenas no fomento de sua produção de café.
Em fevereiro de 2018 o projeto começou com três famílias, era algo pequeno, tímido que em menos de dois anos tomou uma amplitude maior. Em novembro de 2019 já eram mais de 130 famílias atendidas em diferentes instâncias como a transferência de tecnologia, a construção de benfeitorias e a comercialização do café. Isso potencializa o alcance da pesquisa.
Por meio da parceria público-privada, em 2019, foi criada uma premiação para incentivar as famílias a melhorarem a qualidade de seu produto, o projeto Tribos. A iniciativa fomenta um desenvolvimento sustentável amparado nos pilares social (protagonismo ao índio), ambiental (proteção da floresta) e econômico (cafés de qualidade) interagindo de forma harmoniosa.
O caso de Rondônia demonstra que há um grande potencial latente em nossas comunidades indígenas, que pode ser aproveitado pelas esferas pública e privada, de forma a preservar a floresta e a gerar emprego e renda. Entretanto, falta um olhar atento no contato com essas populações. A sociedade não indígena, na maioria das vezes, por desconhecimento ou preconceito não percebe as competências latentes no conhecimento tradicional desses povos.