Carnaval é coisa séria, exige muito compromisso e dedicação. Essa foi uma das frases que mais escutei dos integrantes das escolas de samba cariocas quando, há alguns anos, acompanhei a escola de samba do Grupo A, Acadêmicos do Cubango, nos dias que antecedem o desfile do Carnaval no Rio de Janeiro. A minha pergunta era: o que faz tanta gente se sacrificar o ano inteiro, para brilhar por menos de uma hora no Sambódromo?
Durante cerca de 15 dias que antecedem o desfile acompanhei os preparativos a fim de compreender o imaginário das pessoas que constroem essa festa do povo. Ainda que o desfile das escolas de samba tenha um caráter de indústria de alegorias, essa tradição popular só acontece porque muitos, por convicção, se dedicam à sua construção e investem seu tempo livre e até mesmo dinheiro do próprio bolso para que ela aconteça. Reparei que muita gente tira férias nesse período para poder se dedicar aos preparativos.
Os preparativos
O meu acesso aos preparativos se deu por meio de uma integrante que já havia sido porta-bandeira da escola. Ela me explicou os critérios de avaliação do enredo, das fantasias, o tempo de permanência da escola na avenida e demais quesitos. Soube que os foliões também são avaliados por cantar, ou não, a música do enredo da escola e que os acabamentos das fantasias, apesar da distância dos jurados, também são examinados. Entendi que o tempo regulamentar de 70 minutos de desfile é para o conjunto da escola. Entretanto, a única ala que permanece quase todo o tempo regulamentar na avenida é a bateria, que faz um recuo para que outras alas se aproximem delas. Isso me fez concluir que uma pessoa que desfila na Marquês de Sapucaí permanece muito menos de uma hora na avenida. Após as explicações, seguiam expressões do tipo: “Tá pensando que Carnaval é bagunça?”
Trabalho voluntário
Me lembro de acompanhar o vai e vem da porta-bandeira ao levar e trazer materiais para as costureiras que confeccionavam as fantasias em suas próprias casas. Até ajudei a colar alguns adereços, visitei o galpão onde eram feitos os carros alegóricos. Soube que, nos últimos dias, muitos integrantes sequer vão para casa, dormem ali mesmo. Para descontrair alguns jogam futebol com bolas improvisadas, bem à moda brasileira, o que preenche, plenamente o clichê de o Brasil ser o país do carnaval e do futebol.
Assim, se passaram os dias, acompanhando o fazer das fantasias e os ensaios da escola, que se assemelha ao preparar de uma ópera. Desenvolve-se o tema e ele é transformado em alegoria visual. As costureiras e bordadeiras, principalmente nos últimos dias, trabalham sem parar. Durante os ensaios senti a indescritível sensação provocada pela vibração das centenas de instrumentos de percussão que atravessam o corpo dos que participam. Além disso, há um ar de felicidade nesses encontros comunitários que fazem as pessoas se sentirem importantes, pois cada integrante conta para a construção do desfile da sua escola.
Na madrugada que antecede a apresentação no Sambódromo as escolas transportam seus carros alegóricos pela cidade. Fiquei impressionada ao ver as pessoas empurrando os carros pelas avenidas desertas, como se eu presenciasse uma cena surreal.
A travessia
No dia do desfile, ao chegar na Sapucaí, avistei as centenas de foliões que traziam suas fantasias nas mãos. Grande parte chegava de transporte público. Aquelas pessoas que eu havia visto em suas casas simples haviam se transformado em seres iluminados, com um brilho de felicidade nos olhos. A bateria começou a aquecer seus tambores e a organização a posicionar os integrantes na avenida. Até eu, que não sou carnavalesca, senti um certo nervosismo e me vinha à mente mais uma das frases que me repetiam durante os preparativos: “Quando a bateria toca e se é iluminado pelos holofotes da Marquês de Sapucaí parece que nada mais importa”. Um frio toma conta da barriga, como aquela sensação de quando se está apaixonado pela primeira vez. Parece que todo o sacrifício feito para se chegar a esse momento valeu a pena, ainda que seja apenas por alguns minutos. Parafraseando e misturando os versos de Vinícius de Morais em suas reflexões obstinadas sobre a felicidade e o amor, poderia dizer:
A grande ilusão do Carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Quero vivê-lo em cada vão momento,
(…) E rir meu riso e derramar meu pranto,
(…) Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Assim, logo depois da Semana Santa, começam os preparativos para o próximo Carnaval. Tudo para que sintam, outra vez, a adrenalina que corre nas veias quando se atravessa os 700 m de extensão da passarela do samba. A travessia anual imprescindível para os integrantes das escolas de samba cariocas, que se não for feita, é como se ficassem à margem de si mesmos. Confesso que essa travessia também me impressionou. Recomendo aos que ainda não fizeram que experimentem ao menos uma vez na vida, é inesquecível.